terça-feira, 6 de abril de 2010

Rita Furacão.

A coisa mais remota de que me lembro é de quando eu devia ter dois meses, não mais. Isto, em Julho de 1988. Lembro-me de estar debaixo de um carro, assustadíssima e faminta. Os pés das pessoas que passavam eram enormes, maiores do que eu. Havia um cheiro esquisito que sei agora que era o óleo do carro. Este carro, pensava eu, protegia-me daquele perigoso mundo exterior.
Havia uns miúdos, que não paravam de correr de um lado para o outro, a falar com as pessoas adultas. Estavam constantemente a pegar-me ao colo, coisa que detesto, especialmente se tiverem as mãos peganhentas de terem passado a tarde inteira a comer doces e gelados.
Já o meu irmão, que era igualzinho a mim, não se importava tanto com este movimento de vaivém para cima e para baixo. Se ele não estivesse tão faminto, como eu, ter-se-ia divertido bastante.
Quando os miúdos me mostravam a mim e a ele às pessoas, estas deliciavam-se logo com ele, porque ele era mais gordinho do que eu e mais bonito. Eu também ali, esborrachada mesmo ao lado dele nas mãos daqueles desajeitados, mas as pessoas só o viam a ele. “Socooorroooo!”, miava eu, sempre a tentar escapar-me deles. Assim que me largavam, lá ia eu para debaixo do carro outra vez.
Às tantas, vi uma cara a espreitar o meu esconderijo por baixo do carro. Era uma bonitinha qualquer que desatou a rir-se quando me viu: “Oh, que coisinha tão pequenina que tu és!” Ela tentou pegar-me: “Anda cá, bebé!”
Eu tentei fugir-lhe mas eu era tão magricela e pequenina, e estava de tal ordem confusa e faminta que ela agarrou-me num instante. E pronto, lá fui eu para o colo outra vez.
Pelo menos, ela tinha jeito. “Que ar tão farrusco que tu tens!”, exclamou a bonitinha, rindo-se outra vez e fazendo-me festas muito meigas na cabeça com um dedo que me pareceu gigantesco na altura. “Deixa-me cá ver se és menino ou menina…”
Ela espreitou-me as intimidades e saíu-se com um “És uma linda menina! Então, estás perdida, minha fofa? Ou a tua mãe anda por aqui?” A minha resposta foi, como sempre, “Socoooorrooooo…!”
Nisso, os miúdos apareceram todos à volta dela, a tagarelarem todos ao mesmo tempo. A bonitinha ficou momentaneamente desnorteada mas compreendeu rapidamente aquilo que eles queriam: um dono para mim e para o meu irmão. “Escolha um deles!” berrou uma miúda cheia de sardas. “Eu não sabia que eram dois…”, foi a resposta hesitante dela. “Eu assim fico com pena do outro… Estes gatos são vossos?”
Neste momento, olhei a bonitinha mais atentamente. Tinha pele clara, cabelos e olhos castanhos, algumas sarditas e um sorriso fácil. “São da nossa gata!”, respondeu um. “Ela teve cinco gatinhos, mas não podemos ficar com eles, a nossa mãe não deixa!”, acrescentou outro. “A nossa mãe disse-nos para tentarmos arranjar donos para eles, nem que fique só um. Ainda sobram estes dois!”, berrou mais outro. “Pode ser que ela nos deixe ficar só com um mas não com os dois!” E então, a bonitinha pôs-se a pensar. “Estou a ver…Mas assim é mais difícil escolher.”
Mais tarde, eu soube que ela tinha perdido o gato dela já há bastante tempo e que andava precisamente a pensar em adoptar um outro. “Qual deles é que vocês gostam mais?”, perguntou ela. “Nós gostamos mais do gato, é mais bonito! Mas pode levar o gato se quiser, a senhora é que escolhe!”
Ela pensou mais um bocado. Mas ela, sei eu agora, nunca foi de perder muito tempo. “Eu fico com ela, porque vocês arranjam com mais facilidade um dono para o gordinho. E esta é tão lindinha!” e ela riu-se outra vez, fazendo-me mais festas. “Tenho foooome!”, continuei eu a miar.
Lembro-me que a seguir, ela andou, andou, andou e fartou-se de andar. Falou com um monte de gente e parou em não-sei-quantos sítios. Eu não parava de miar, pois estava com uma fome atroz.
“Pronto, fofa, já estamos a chegar a casa!”, disse ela, a determinada altura.
Chegámos então a um sítio fresco e escuro, com um delicioso cheiro a comida e a terra molhada de plantas regadas.
“Oi, mãe.”, anunciou ela, “Olha o que eu tenho aqui.” e pôs-me especada em cima duma senhora deitada numa cama, com um aspecto doente, mas cujos olhos verdes enormes pareciam que me iam devorar.
“Oooooh! Tão querido!”, exclamou ela, “E tão pequenino! Onde é que o foste buscar?”
Com uma mão, aquela senhora chamada de Mãe fez-me festinhas. Na outra pegava qualquer coisa comprida, que ardia na ponta e cheirava mal que se fartava, para além de me fazer arder as vias respiratórias.
“É uma gata” disse-lhe a bonitinha, “e encontrei-a na rua, com uns miúdos que queriam arranjar um dono para ela.”
A seguir, ela levou-me pelos ares outra vez e pôs-me num chão muito frio, que era o da cozinha, mas eu não parei de miar, cheia de fome.
“Prooonto, já vai!”, dizia ela, “Já estou a preparar a tua comidinha!”
Ela estava a movimentar coisas em cima daquilo que eu mais tarde percebi ser o fogão e, mais importante ainda, a origem de todos os petiscos.
“Então, e que nome é que lhe vais dar?”, perguntou a Mãe, lá do quarto.
“Não sei ainda. Estava a pensar num nome assim fino, como Natasha…”, respondeu ela.
“Na-quê?!”, refilou a Mãe, com a voz rouca. “Que raio de nome é esse?! E o quê que tem de fino? Natasha ou na panela, não estou a ver onde é está a diferença!”
A minha futura dona ignorou a última observação da Mãe e continuou a aquecer o leite para me dar. Quando finalmente ela pousou o prato de leite no chão, eu nem vi mais nada: saltei directamente para cima daquela coisa e entornei o leite por todo o lado. Por trás de mim, ouvi a minha dona a rir-se: “Coitadinha, está mesmo cheia de fome!”
Ao fim de uns bons dez minutos a mastigar os deliciosos biscoitos de carne que ela tinha posto no leite, ela pegou em mim com muito jeitinho, porque eu fiquei com uma barriga enorme, e foi pôr-me com a Mãe outra vez.
“Xiiiiipááá!!!”, exclamou a Mãe, “Parece um barril com quatro palitos em baixo! Olha só, eu consigo ver a barriga dela entre as pernas de trás!”
A minha nova dona riu-se: “Ela comeu muito. Só espero que não vomite.”
Eu pus-me a olhar para ela. “Vomitar, eu, mulher? ” ronronei eu, “Achas mesmo que eu vou deitar aquele lindo leitinho todo cá para fora? Nem penses!“
Depois disto, fechei os olhos e não me lembro de mais nada.
Uns tempos depois, a minha dona levou-me à veterinária e estabeleceram a minha data de nascimento a 5 de Maio. “És uma taurina!”, exclamou a minha dona.
Ainda hoje estou para perceber esta. Sempre que me olho ao espelho, tudo o que vejo é uma gata branca e cinzenta. Em língua de gente, isto significa que eu sou uma Comum Europeia. Que eu saiba, os touros não se incluem nesta classificação.
“Então, e como é a gata se chama?”, perguntou a veterinária.
Dias antes desta consulta, a minha dona tinha tido uma pequenina discussão com a Mãe por causa do meu nome. A minha dona continuava a insistir em chamar-me Natasha. “Porque é que não lhe chamas Caçarola ou Frigideira, ou coisa parecida?”, zombava a Mãe.
Uma bela tarde, a minha dona chegou do trabalho e como sempre, eu fui a correr para ela, arqueando o mais que podia a minha ridícula espinha dorsal e espetando a minha minúscula cauda para o ar, enquanto fazia os meus ainda insignificantes ronrons.
“Queres ver uma coisa gira?”, perguntou a Mãe, olhando para a minha dona com um ar divertido. “Rrrrrrrrrr!!”, fez a Mãe, de repente. “Rrrrrrrrrrrrrrrrr!!”
Aquele som vibrante era absolutamente irresistível. Entrava-me pela espinha adentro e fazia-me cósegas por todo o lado. Eu desatei a correr à volta da cama, feita doida, dando voltas no ar e tentando caçar ratos imaginários por baixo da manta da Mãe, frenética e completamente maluca. Depois desatei a correr para o terraço.
“Rrrrrrrrrrrr!!!”, fizeram elas outra vez, “Rrrrrrrrrrr!!” e lá voltei eu a alta velocidade à cama da Mãe, aterrando mesmo no meio das pernas dela, tentando fazer o maior estrago naquela manta com as minhas quase inexistentes garras.
“Então, e como é a gata se chama?”, perguntou a veterinária. A resposta da minha dona foi pronta e sem hesitações: “Rita.”
***
A minha gata Rita nasceu em 1988 e morreu perto do Natal de 2004. Tinha 16 anos. Eu adorava-a e ainda hoje choro ao recordar-me do dia em que cheguei a casa do trabalho, e a encontrei morta, deitada numa posição em que parecia estar a dormir.
Ela entrou na minha vida quando eu andava ainda no ensino secundário. Lembro-me do dia em que a encontrei debaixo de um carro, como se tivesse sido ontem. Tinha os olhinhos muito abertos, era muito pequenina e estava assustada com tudo o que se passava à volta dela. Assim que a peguei, vieram esses miúdos todos, e quando dei por mim, estava a levá-la para casa, passando no caminho por umas quantas lojas para comprar comida e outras coisas para gatos. Eu passei, de facto, dez minutos inteiros a observá-la enquanto comia, com as patitas todas molhadas de leite que ela tinha derramado pelo chão da cozinha.
Longe estava eu de imaginar que eu iria afeiçoar-me tanto a ela e que teria a sorte de a ter comigo por tanto tempo. Na verdade, ela ainda está cá, num cantinho especial do meu coração.
Foi a minha mãe quem lhe deu o nome, mas fui eu que lhe dei o apelido. O nome dela era Rita Furacão. Um dia desses conto porquê.

C.A.Margonper.

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